terça-feira, 24 de outubro de 2023

O livro fechado

 

Era uma vez um livro. Um livro fechado. Tristemente fechado. Irremediavelmente fechado. 
Nunca ninguém o abrira, nem sequer para ler as primeiras linhas da primeira página das muitas que o livro tinha para oferecer.
Quem o comprara trouxera-o para casa e, provavelmente insensível ao que o livro valia, ao que o livro continha, enfiara-o numa prateleira, ao lado de muitos outros.
Ali estava. Ali ficou.
Um dia, mais não podendo, queixou-se: 
– Ninguém me leu. Ninguém me liga. 
Ao lado, um colega disse:
– Desconfio que, nesta estante, haverá muitos outros como tu.
– É o teu caso? – perguntou, ansiosamente, o livro que nunca tinha sido aberto.
– Por sinal, não – esclareceu o colega, um respeitável calhamaço. – Estou todo sublinhado. Fui lido e relido. Sou um livro de estudo.
– Quem me dera essa sorte – disse outro livro ao lado, a entrar na conversa. – Por mim só me passaram os olhos, página sim, página não... Mas, enfim, já prestei para alguma coisa.
– Eu também – falou, perto deles, um livrinho estreito. – Durante muito tempo, servi de calço a uma mesa que tinha um pé mais curto.
– Isso não é trabalho para livro – estranhou o calhamaço. 
– À falta de outro... – conformou-se o livro estreitinho.
Escutando os seus companheiros de estante, o livro que nunca fora aberto sentiu uma secreta inveja. Ao menos, tinham para contar, ao passo que ele... Suspirou.
Não chegou ao fim do suspiro, porque duas mãos o foram buscar ao aperto da prateleira. As mãos pegaram nele e poisaram-no sobre os joelhos.
– Tem bonecos esse livro? – perguntou a voz de uma menina, debruçada sobre o livro, ainda por abrir.
– Se tem! Muitos bonecos, muitas histórias que eu vou ler-te – disse uma voz mais grave, a quem pertenciam as mãos que escolheram o livro da estante.
Começou a folheá-lo e, enquanto lhe alisava as primeiras páginas, foi dizendo: 
– Este livro tem uma história. Comprei-o no dia em que tu nasceste.
Guardei-o para ti, até hoje. É um livro muito especial. 
– Lê – exigiu a voz da menina.
E o pai da menina leu. E o livro aberto deixou que o lessem, de ponta a ponta.
Às vezes, vale a pena esperar.
António Torrado
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