terça-feira, 4 de abril de 2023

Há uma estranha acalmia, agora


    Há uma estranha acalmia. Digo-o com provas, acabo de passar por campos que dormitam e acabo a contemplar o mar, muito cansado, a sossegar-se. Há dias era muito brava a borrasca, queria beber-nos inteiros e afogar-nos a todos. Agora lavou-se céu e terra, não há deuses desorientados nem seres humanos a bramir. Longos caudais vão-se dessecando. Barragens apertam-se para ganhar espaço. As vinhas agradecem os pés ainda molhados e o resto da água ora se escoa ora se evapora, talvez volte a chover mas mais tarde e já com sensatez. 
    Os desvalidos, os desalojados, os políticos, ainda se acusam. É que a mãe natureza não obedeceu ao Homem, ser castigador, condutor dos povos. A mãe natureza não entende a sua língua e sabe no seu íntimo de fogo e terra, de água e ar, de espíritos mágicos e olhos de visões de longo alcance, que nenhum Homem a conhece a ponto de ser capaz de a conquistar.
    Há uma estranha acalmia, agora. Pássaros trocam recados e esclarecem: que erro é desejar um mundo melhor. Não há. Vivemos no melhor dos mundos. Pena não haver melhores utentes para o melhor dos mundos. Uma brisa quase quente brinca com cristas de onda e areia que se move docemente. Correm dois cães pela praia e uma criança, indiferente aos adultos, constrói uma espécie de poema que cheira a algas e a dias novos.
    Oiço os últimos dias do ano a afastarem-se, cabisbaixos. Oiço os passos de um novo ano que se aproxima.
    Há uma estranha acalmia, agora, em mim. E não estou habituado. É só nesses instantes que recordo. E ao recordar reprimo lágrimas. E nas lágrimas revejo-me como se os meus espelhos de sal e água fossem o que eu sempre fui.
Alexandre Honrado

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