Tive a felicidade de viver a infância antes da era dos videojogos, dos Nintendo, Game Boy e semelhantes, e de ter sido protegido de alguns dos danos causados pela televisão por pais idealistas.
Lembro-me de passar horas no meu quarto a brincar com os meus bonecos de peluche e a minha coleção de rochas, e de inventar histórias sobre eles. Atribuía a cada um uma personalidade própria e convertia-os, assim, em personagens de um mundo imaginário que, ora existia apenas na minha cabeça, ora era partilhado com irmãos e outros companheiros de jogos.
Hoje em dia, a função criativa de imaginar mundos e personagens foi usurpada por adultos longínquos que, a partir de estúdios televisivos e empresas de software, fornecem às crianças os mundos e as personalidades pré-fabricadas da televisão e dos videojogos.
Por uma mera questão de lucro, as pessoas viram-se privadas de uma capacidade
extraordinária da mente humana. Além do mais, os mundos que são hoje oferecidos às crianças, e que estão sempre sujeitos a agendas comerciais, não passam de sucedâneos de
má qualidade face às criações espontâneas da imaginação infantil.
A maioria desses mundos apresenta cenários simplistas da luta entre o bem e o mal,
e situações onde os problemas são resolvidos através da violência. Trata-se de mundos
desprovidos de qualquer subtileza ou profundidade, e que se encontram desligados do
resto do mundo. Pior ainda, são mundos finitos, ao invés da mente da criança, e limitados
pela forma como a narrativa é apresentada. Estes constrangimentos afetam,
necessariamente, o desenvolvimento da mente da criança e a capacidade de ela processar
vários elementos do seu inconsciente.
Se as brincadeiras de criança funcionam como prática de vida, então a televisão está
a ensinar as crianças a serem consumidores passivos. Os videojogos condicionam-nas a
obter recompensas sem sentido, sob a forma de pontos, a destruir inimigos aleatórios, e a
aceitar escolhas feitas por pessoas que atuam como remotos programadores das suas
vidas.
O adulto que é produto de uma infância desprovida da oportunidade de construir
mundos de forma espontânea e autónoma é alguém que será sempre vulnerável às histórias
criadas pelos outros. Esse adulto não só procurará apenas artigos de entretenimento, mas
também será facilmente manipulado por políticos e publicitários, que procuram lucrar com
a aceitação de uma história única. Em vez de se tornarem cidadãos ativos, esses adultos
serão sujeitos obedientes, pois não terão tido a experiência de criar o seu próprio mundo.
Quando dizemos que as crianças “brincam” com videojogos, estes não são tanto
objetos de brincadeira, mas antes substitutos de brincadeira, símbolos do desaparecimento
da atividade de brincar da nossa cultura.
Brincar é uma atividade criativa. Se dermos a uma criança alguns blocos, veremos
surgir camiões, florestas, jardins zoológicos. Agrupemos algumas crianças e veremos que,
juntas, criarão mundos plenos de imaginação, onde se misturam materiais físicos e culturais.
Os mundos de brincadeira que as crianças criam, e que constituem o Reino da Infância, são
um terreno fértil de prática para o trabalho criativo do adulto empoderado, que cria uma
vida digna para si mesmo e contribui para um mundo mais belo.
Somos supostos ser seres criativos e não viver apenas as vidas que nos são atribuídas.
Tal como escreveu Joseph Chilton Pearce, “Quando somos crianças, a realidade é feita
à medida dos nossos sonhos.” Isto também se aplica aos adultos. Será, contudo, algo
impossível de realizar se nunca o tivermos experimentado em crianças.
Charles Eisenstein
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